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Vida de pós-graduando

Suicídio de doutorando levanta questões sobre saúde mental na pós (Folha de S. Paulo)

Em qualquer lugar do mundo, uma pessoa que decide se aventurar na vida acadêmica após a graduação está adquirindo um bilhete para uma viagem que, muitas vezes, pode ser bastante desagradável e traumática.

Ao contrário do que possa parecer, em especial àquelas pessoas que dele não fazem parte, o meio acadêmico não é nada fácil. A mudança do status de “estudante” para “cientista” é intensa, abrupta e implacável. O aluno de pós-graduação em geral é exposto a um aspecto do mundo que ele muitas vezes nem sabia que existia durante a graduação; de repente ninguém mais está disposto a esperar por ele, e logo fica claro que ele será o único responsável pelo que faz – e pelo que deixa de fazer. Para alguém que está acostumado a seguir os prazos e cronogramas que são criados (ou impostos) por outras pessoas, não é nada trivial aprender a planejar suas atividades – muitas vezes com semanas ou meses de antecedência.

Em uma situação normal, a figura do orientador serviria para ensinar e incentivar esse tipo de atitude – mas muitas vezes não é isso que acontece. Em vez disso, cada encontro de trabalho torna-se uma sessão de tortura, na qual prazos cada vez mais curtos e cobranças cada vez mais exigentes são desfiladas diante do orientando, que por sua vez sente-se cada vez menos preparado para enfrentar os desafios que o trabalho oferece, que não são poucos.

Disso nasce a chamada “Síndrome do Impostor“: a pessoa começa a pensar, erroneamente, que não é capaz de cumprir o que prometeu fazer, de fazer jus à confiança depositada nela, de corresponder às expectativas do orientador… a pior pressão que a pessoa sofre é aquela exercida por si mesma. A pessoa olha para si mesma e não enxerga o que espera, que é o padrão de um cientista conforme a imagem deturpada exibida por jornais, revistas e pelo entretenimento em geral de uma pessoa inteligente, racional, crítica, inovadora.

Ninguém é inteligente, racional, crítico e inovador 24 horas por dia.

Como já disse Edison, a genialidade é 1% inspiração e 99% transpiração. Ou seja, 99% do tempo não estamos fazendo nada senão o trabalho árduo e contínuo de todos os dias – o trabalho da formiga operária. Aqueles poucos momentos em que surge uma grande idéia, aquela que “destrava” todo o trabalho, que desencadeia todo o desenvolvimento, no entanto, são a única coisa que transparece ao expectador externo. Todo o trabalho, o sono perdido, os caminhos sem saída, as idéias que deram errado, tudo isso é ignorado, e a imagem que fica é somente aquela idéia genial, da pessoa que está sempre dizendo algo significativo e profundo o tempo todo.

É com esse fantasma que quem se aventura na pós-graduação convive: a idéia de que você só vale alguma coisa como ser humano se demonstrar, todo o tempo, que é capaz de ser inteligente, racional, crítico e inovador. E, quando falha, a pessoa corre o sério risco de desenvolver uma série de problemas psicológicos que nascem do confronto entre a imagem do que se deve ser e do que se é realmente. Esse é o cerne da Síndrome do Impostor: “estou aqui porque mostrei que sou genial, se eu não for genial eu sou um impostor e um mentiroso, não sou digno”. Independentemente de suas realizações, a pessoa compromete sua autoestima à avaliação sobre si mesma que percebe nos outros.

No mundo acadêmico isso é particularmente cruel, pois o conceito geral é de que o cientista só tem valor se publica muitos artigos em revistas de alto impacto, que recebem milhares de submissões e recusam a maior parte. Um exemplo: a Nature Materials, edição da famosa revista Nature dedicada à ciência de materiais, recebeu aproximadamente 250 submissões por mês em 2012. Menos de 10% desses foram eventualmente aceitos para publicação. Mesmo assim, essa altíssima taxa de turnover é ignorada e a rejeição de um trabalho torna-se uma experiência muitas vezes traumatizante e nociva à autoestima do pesquisador, que se vê diminuído, e que muitas vezes vê seu trabalho sendo julgado não pela qualidade da pesquisa que foi feita, mas por outros critérios – inclusive critérios políticos.

E no Brasil?

Isso tudo vale para o mundo inteiro. Em cada país o sistema de pós-graduação funciona de maneira ligeiramente diferente, mas a pressão por resultados é, invariavelmente, enorme.

Naturalmente, no Brasil a situação é bem pior.

As condições da ciência no Brasil nunca foram muito favoráveis. Talvez tenha havido exceções pontuais a essa regra, mas no geral não há dinheiro para pesquisa:

  • Bolsas de mestrado e doutorado, quando existem, são baixas, especialmente quando se leva em conta o custo de vida nas cidades onde há Universidades – quase sempre públicas – com programas de pós-graduação
  • O pós-graduando não se encaixa em nenhuma categoria profissional, o que significa que os anos de trabalho em mestrado e doutorado não contam para a contagem de tempo da aposentadoria, por exemplo
  • Não há segurança: muitas vezes o pagamento da bolsa atrasa, ou simplesmente não acontece. Muitas vezes a pessoa está no exterior e fica totalmente vulnerável, à mercê da burocracia
  • Os recursos para equipamento de laboratório são igualmente escassos. Há poucos equipamentos de cada tipo disponíveis, e naturalmente as filas de espera são grandes.
  • Os recursos para a manutenção do equipamento de laboratório são igualmente incertos: quando um equipamento apresenta defeito e não há maneira de se executar uma “engenharia de emergência”, o equipamento fica sem uso e quem precisa dele, com as mãos atadas.

Isso sem contar o nível de burocracia envolvido em cada passo do caminho. Via de regra o caminho para se conseguir recursos é longo e tortuoso. E, como são limitados, geralmente a concorrência é brutal, o que leva a uma pressão ainda maior não apenas por quantidade de resultados, mas também por relevância.

Ainda há a crise econômica. A primeira vítima dos cortes é sempre a pesquisa, por menor que seja seu orçamento. Cada vez há menos perspectivas para quem está na pós-graduação. O noticiário político e econômico, que já deixa qualquer um depressivo, é ainda pior para o pós-graduando, pois é indicativo de que o futuro é ainda pior.

No Brasil ainda não temos uma cultura que valorize o suficiente o trabalho acadêmico. Isso leva muitas famílias a questionar a sabedoria das decisões de alguém que escolhe seguir por esse caminho, em vez de “conseguir um emprego”. “Mas o seu primo já está trabalhando em tal companhia, e faz tal e tal coisa, e já ganha um bom salário, e você aí ainda estudando. Quando você vai parar de estudar pra casar e ter filhos? Você deveria fazer alguma coisa prática, isso daí não serve pra nada”.

Além de responder às questões que pretende responder com seu trabalho, a mente de um pós-graduando é atormentada por outras perguntas que, idealmente, não deveriam ter tanto peso. Como produzir resultados relevantes e em abundância, preocupado em não corresponder às expectativas do orientador? Em ser capaz de cumprir com suas responsabilidades? Em conseguir usar o equipamento de que precisa? Em conseguir os materiais necessários para a pesquisa? Em fazer a família compreender o que significa seu trabalho? Em pagar as contas do mês e ainda se alimentar?

Eu poderia continuar este post, se quisesse compartilhar experiências pessoais. Todo mundo que passou pela pós-graduação vai estar cheio de histórias assim. Mas não são coisas que eu queira repassar – pelo menos, não aqui, nem hoje.

A vida de pós-graduando já seria difícil o suficiente se houvesse “apenas” a pressão do trabalho. Com tudo isso, para muitas pessoas ela se torna insuportável – e a alternativa que algumas pessoas recorrem, como foi o caso do rapaz do ICB-USP, às vezes pode parecer um fim menos cruel.


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