de Finibus Bonorum et Malorum



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Saindo do “armário”

A person with a mind so expansive it goes beyond her head

Usualmente a expressão “sair do armário” significa algo bastante específico, mas eu decidi me apropriar dela e transformá-la em algo um pouco mais abrangente, mantendo o núcleo de significado que é geralmente vinculado a ela.

O tal do “armário” proverbial, neste caso, não é o da não-binaridade (que, por si só, já compreende uma certa generalização do objeto). Para os poucos incautos que por acaso venham parar aqui e que, por algum motivo, não saibam do que se trata, parto diretamente para o sentido que resolvi dar ao termo.

Trata-se de assumir uma certa característica pessoal que muitas vezes pode ser encarada como uma “desvantagem” social, quase sempre associada a algum tipo de preconceito. Este, por sua vez, geralmente se fundamenta em alguma convenção social antiquada, que por sua vez se baseia em (a) alguma interpretação religiosa (muitas vezes equivocada) ou (b) alguma noção científica desatualizada.

A discussão sobre gênero e sexualidade é outra que um dia pode vir a ser tema de algum texto publicado aqui, mas ainda não estamos preparados para essa conversa.

Não; hoje, o tema é neurodiversidade. Mais especificamente, o Transtorno do Espectro Autista e o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Tentei, futilmente, escrever sobre cada um deles aqui. Por meses este post tem se arrastado porque, entre outros motivos, eu não consigo me decidir sobre como falar sobre cada um desses transtornos. Então me caiu a ficha de que este post não deve ser sobre isso.

Seria interessante esclarecer um pouco o que é cada um? Sim, seria. Mas isso não caberia num post. Ou, pelo menos, não neste.

Por isso, desisti dessa abordagem.

O que é TEA e TDAH?

“Então que subtítulo é esse, Homem Paradoxo?”

Eu achei que deveria, no mínimo, tentar explicar como cada um deles me afeta.

No caso do TEA, eu tenho um déficit social. Não sei interagir como um ser humano “normal”. Tenho uma certa tendência a ser literal e deixar de perceber certas nuances da comunicação com outras pessoas. Além disso, eu tenho comportamentos restritos e repetitivos.

O TDAH é algo mais intrínseco; as vias de entrega de dopamina no cérebro não funcionam direito, e por isso eu tenho dificuldade com manter a atenção em qualquer coisa, ou com motivação. A dopamina é um neurotransmissor que participa do mecanismo de recompensa no cérebro; manter o foco é um problema porque se eu não recebo dopamina durante uma atividade, ela deixa de ser “interessante”. Ao mesmo tempo, essa aparente “falta de interesse” pode levar a uma impulsividade acima do comum.

Eu e a Neurodivergência

Ainda não tenho certeza sobre esse termo: “neurodivergência”. Não porque ele não seja apropriado, mas porque ele foi “capturado” por certas entidades que se dizem apoiadoras de pessoas com esse tipo de transtorno mas na verdade são preconceituosas, capacitistas e no geral bem escrotas.

Mas é um termo sucinto que abrange várias coisas, então, pelo menos por enquanto, vou usando.

Um aspecto importante de se mencionar, aliás, é que tanto TEA quando TDAH são transtornos, e não doenças. Ou seja, não existe a necessidade de cura; são condições que persistem por toda a vida, e de forma geral o diagnóstico preciso possibilita a criação de uma conduta individualizada (em ressonância com a característica espectral dos dois).

Eu cresci nos anos 80 e 90. Naquela época não existia nem sombra da noção de espectro autista. A pessoa considerada autista naquela época era o estereótipo que, de certa forma, perdura até hoje. Atualmente uma pessoa dessa seria considerada portadora de “autismo profundo”, em que a suas habilidades de conviver, se comunicar e viver de forma autônoma são muito prejudicadas. O TDAH tem uma história um pouco mais longa, com critérios diagnósticos sendo definidos a partir da década de 80; ainda assim, muito em cima da hora pra mim.

Então era difícil até mesmo imaginar que eu, uma pessoa relativamente “normal”, pudesse ser neurodivergente. A jornada até agora tem sido de total redescoberta sobre mim mesmo, porque aos poucos eu tenho revisitado a minha vida inteira, parte por parte, identificando onde um ou outro transtorno afetou minha vida de alguma forma.

Isso inclui uma boa conversa com a minha família – que ainda não aconteceu de forma significativa. Até mesmo porque eu desconfio que cheguei a passar por uma avaliação, mas eu nunca soube de fato o que foi concluído nessa avaliação, exceto que eu seria “superdotado”.

Não pretendo falar disso aqui. Pra mim é um tópico meio espinhoso e eu tenho um complexo enorme com isso. Basta dizer que eu deixei essa “etiqueta” moldar a minha personalidade, mais que qualquer coisa.

Eu sempre me achei meio diferente, mas nunca consegui realmente discernir o que me fazia diferente. Eu tinha muita dificuldade com mudanças. Era “introspectivo”, “tímido”, “focado”. “Esquisito”. Mas isso tudo sempre pareceu ser só idiossincrasia. Traços de personalidade. Ou, pra ser mais preciso, que fosse tudo algo… “normal”. Demorou muito tempo até eu começar a perceber que as pessoas não agem da mesma maneira. E ao longo da vida isso me causou muita angústia, estresse e dor.

Como chegamos até aqui

Gradualmente, as pistas começaram a ficar menos sutis. E, aos poucos, fui notando particularidades que se encaixavam nos critérios de diagnóstico do TEA. Ao longo dos últimos anos, comecei a observar alguns dos sintomas mais claramente; foi um processo gradual, e introduzir granularidade só pra conseguir definir uma data exata me parece um exercício meio fútil. Então, não façamos isso.

Muito embora eu sinta uma grande necessidade de identificar e enumerar os sintomas, não sei se isso é realmente possível. Em parte porque o diagnóstico não funciona assim, e em parte porque as minhas memórias de infância são bastante tênues, e até mesmo as da adolescência e início da vida adulta já estão meio nebulosas.

Mas eu lembro que, muitos anos atrás, um amigo me falou sobre “DDA” (Distúrbio do Déficit de Atenção), a encarnação anterior do TDAH. Achei interessante como eu me identificava com aquela descrição, mas ficou nisso. Não fui atrás de saber mais a respeito, apesar de ter feito uma nota mental a respeito. Pra constar, isso foi na época do fotolog. Não sabe o que é fotolog? Pois é.

Ironicamente, foi quando a exposição midiática do TEA começou a ser mais extensa que eu comecei a me incomodar com isso. Acho que antigamente era mais difícil identificar isso, justamente por não existir essa exposição. Começar a ver certos comportamentos em filmes, séries e outros formatos começou a despertar memórias e, muitas vezes, reconhecer certos comportamentos e estereotipias em mim mesmo.

Foi quando eu assisti “Rain Man” há alguns anos que me começou a cair a ficha. Eu ficava pensando “nossa, eu faço isso”, “nossa, eu faço isso também”, “e isso também!”. Coisas sobre as quais nunca falei com ninguém. Ver o Sheldon em The Big Bang Theory também me levantou esse “alerta”. Mas como eu disse, isso não foi algo pontual; não existe um item único que seja o grande responsável por me dar essa perspectiva, mas sim um conjunto amplo de pequenas coisas que fui observando aqui e ali, inclusive (principalmente, na verdade) nas mídias sociais, como Instagram e Twitter (como os milhões de leitores deste blog sabem, não tenho Facebook há pelo menos cinco anos).

E finalmente, durante a pandemia, entre todas as coisas que foram exacerbadas e escancaradas por tudo o que tivemos que passar, o TEA finalmente ficou óbvio pra mim. Ficou perfeitamente claro que eu me encaixava em algum ponto do espectro. Então eu comecei a tentar me informar mais a respeito, e descobri que “autismo” não era mais aquela imagem que eu tinha na cabeça do “autista profundo”, não-verbal, com alta necessidade de suporte (a “descrição” de autismo dos anos 80/90 era algo bem preconceituoso, por sinal).

“Esta parte da minha vida se chama… diagnóstico formal”

Bom, e aqui estamos: acho que consigo, afinal, definir um dia “exato” em que eu decidi meu autodiagnóstico de TEA: 11 de Janeiro de 2022. Foi o dia em que eu assisti a este vídeo (sim, eu fui fuçar meu histórico do Youtube).

A partir daí, a verdadeira jornada começou; aos poucos, fui me educando a respeito e processando essa informação, sem saber direito o que fazer com isso tudo. Muita introspecção e reflexão, com momentos de angústia misturada com alívio, e pouco mais de um ano depois encontrei o GRAPAL. Sem isso eu não sei se teria qualquer condição de me consultar com um psiquiatra para passar por um processo formal de diagnóstico.

Mas, ali estava eu, finalmente numa consulta psiquiátrica, depois de anos trabalhando pra superar o meu preconceito e o auto-estigma. Uma longa entrevista cheia de emoções e a psiquiatra olhou pra mim e falou: “olha essa tabela aqui do DSM-V, a gente bateu todos os requisitos. O que você acha?”

Estava fechado o diagnóstico clínico. Ainda era necessário um laudo, confirmando o diagnóstico neuropsicológico (a versão correspondente a um exame). Então, lá fomos nós, atrás de uma resposta. Essa deve ser a pior parte de todo o processo: o próximo passo é muito claro, mas ao mesmo tempo a barreira é alta.

Um teste neuropsicológico não é nada fácil de conseguir. O primeiro “orçamento” foi completamente proibitivo. Sem chance. A demanda é tão alta, que conseguir isso através do SUS é virtualmente impossível. Depois de procurar muito, encontrei um lugar onde isso estaria disponível, desde que com encaminhamento pelo SUS. Mas, de novo, a fila é enorme, e eu precisaria ir até um CAPS e conseguir convencer quem quer que me atendesse a me dar esse encaminhamento; um passo que, aliás, eu já tinha dado! O GRAPAL é vinculado ao HC, mas não conta como SUS porque só atende alunos da Faculdade de Medicina. Felizmente esse mesmo lugar oferece o teste a um valor bem mais acessível, que com algum esforço daria pra pagar.

Então lá fui eu, com o pedido de avaliação da psiquiatra, até essa clínica em Higienópolis. Tinha conversado com eles antes, considerado se dava pra pagar, felizmente tinha alguma coisa separada pra uma emergência, então fui. E, pra constar: sim, estou recomendando a Clínica.

Para não influenciar alguém que por acaso vá passar pelo processo, prefiro não falar sobre detalhes do teste. Basta dizer que ele avalia vários aspectos, como atenção, memória, aprendizagem, raciocínio, e assim por diante. E, no caso de adultos, sim, ele leva em conta a idade e possíveis estratégias de masking que a gente possa ter adquirido com o tempo (que poderiam influenciar o resultado).

Oito semanas depois, saí de lá com um laudo de dezesseis páginas, esclarecendo todos os sinais e como tudo isso confirma que eu “preencho os critérios” para o Transtorno do Espectro Autista com especificador nível 1.

TEA é um espectro; não há “níveis” de autismo. O especificador, no caso, está mais relacionado ao nível de suporte que a pessoa necessita.

Levei esse laudo para a psiquiatra, e saí de la com um Relatório Médico declarando, oficialmente, que eu estou no espectro autista.

Então tá; mas e daí?

Daí, que isso iniciou um processo completamente novo na minha vida. Ao mesmo tempo que reavalio tudo que já vi, fiz e vivi, comecei a buscar maneiras de viver de forma mais coerente comigo mesmo.

Às vezes, fica a impressão de que os sintomas de autismo aumentaram depois do diagnóstico; mas isso vem mais de eu me sentir mais livre pra agir de forma natural e menos amarrado ao masking de tentar parecer “normal”.

Outras vezes, vez a Síndrome de Impostor me fazer duvidar de mim mesmo, achar que tudo isso é bobagem e eu estou só buscando racionalizações para desvios de caráter. Essa sensação é perigosa e é algo que eu preciso trabalhar muito pra evitar ao máximo, inclusive porque eu sempre me achei insuficiente pra tudo.

De repente, eu me senti livre. Tendo que lidar com os mesmos problemas que antes, mas livre. Saber a origem ajuda muito na hora de lidar com as dificuldades; no mínimo, ajuda a amenizar o sentimento de culpa.

O laudo de TEA já indicava a possibilidade do TDAH também, mas avaliava que ele estaria relacionado a um transtorno de ansiedade. Pensando em retrospecto, não dá pra culpar a pessoa. A relação de causalidade não é direta então fica muito difícil entender o que veio primeiro.

Quando comentei sobre isso com a psiquiatra ela me deu um teste pra avaliar o TDAH, e falou “preenche isso e traz na próxima consulta”.

Então eu naturalmente procrastinei até o último minuto, e naturalmente preenchi o questionário já na antessala, quinze minutos antes da consulta seguinte (oi, red flag)…

Sem entrar em muitos detalhes, saí de lá com o diagnóstico confirmado de TDAH. O que não é exatamente uma grande surpresa, ainda mais olhando em retrospecto.

“Esta parte da minha vida se chama… autorrealização”

É um processo, no mínimo, paradóxico perceber a explicação para tantas dificuldades e, ao mesmo tempo, perceber tudo que eu consegui realizar mesmo com um handicap enorme como esse… é uma libertação frustrante, um alívio enfurecedor, um desperdício de economia.

Processar e internalizar esse paradoxo tem sido o foco dos meus dias. “Aceitar o que passou, e o que virá”.

Mesmo que seja só por hoje.


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