A Copa do Mundo começou semana passada – e cá estamos de novo, neste clima esquisito que toma conta do Brasil de quatro em quatro anos. Pra mim, a diferença é que desta vez meu círculo de convivência se expandiu desde a última vez, e por isso algumas pessoas podem ter achado estranho eu não entrar no clima de torcer pela seleção brasileira.
E isso tudo, diga-se de passagem, não tem a ver com o sequestro da simbologia pela extrema direita. Meu ranço com a selecão brasileira já passa dos vinte anos de idade, desde a equipe que foi para a França em 98. Embora fosse melhor que a de 94, ela foi rodeada de brigas de ego e polêmicas (isso sem falar do “evento” com o Ronaldo).
Seleção Brasileira, mas não futebol brasileiro
O time de 98 foi o primeiro a ter mais jogadores que atuavam no exterior que no Brasil. Pelo menos a princípio, não tenho nenhum motivo para ser fundamentalmente contra o cara jogar no exterior. Se é bom jogador, ele tem o direito de jogar no clube que quiser.
Isto posto, no Brasil a coisa é um pouco diferente. Isso porque, como em outras áreas, o Brasil não passa de “fornecedor”. Jogadores brasileiros são um tipo de commodity; clubes brasileiros os selecionam e treinam, ainda muito jovens. Quando o talento individual se torna óbvio, o atleta é logo recrutado por algum time, geralmente europeu. Nesse momento é declarado o seu “sucesso”, e ele passa a ser candidato “sério” para uma vaga na seleção brasileira.
Mas em 2022, dos VINTE E SEIS jogadores brasileiros no Qatar, TRÊS atuam no Brasil. Um conjunto desses não tem a menor possibilidade de representar o que o futebol realmente é no Brasil. O fato arbitrário deles terem nascido aqui é uma coincidência. A qualidade do futebol deles é uma combinação de vários fatores. Os dois principais são seu próprio talento natural e seu condicionamento físico, cultivado pelos clubes onde atuam.
Enquanto isso, no Brasil, com exceção dos “grandes clubes”, times passam por dificuldades financeiras, e péssimas condições de treino e de jogo. Atletas são obrigados a se dividir entre a atuação no futebol e outra atividade “normal” para se sustentarem, pois não conseguem se manter com o salário que recebem no esporte. Isso quando as condições de trabalho já não são ruins o suficiente. Entre salários baixos, insegurança na carreira e cartolas trambiqueiros, alguns deles simplesmente desistem.
É esse o tal do “país do futebol”? É esse o “futebol-arte” que o mundo está acostumado a associar à camisa amarela?
Não.
Quem faz a fama…
O Brasil já gerou times absolutamente fantásticos. A equipe de 70, de Pelé, Rivelino e Antonio Carlos. O time de 82, de Zico, Sócrates e Falcão. E é esse tipo de futebol que todo mundo está acostumado a ver quando a seleção brasileira atua. Mas o futebol brasileiro não é nem sombra disso. Entre o talento individual e o salário que recebem, os jogadores convocados são a antítese do verdadeiro futebol brasileiro.
Tanto que uma das marcas da seleção brasileira é a ausência de familiaridade entre os jogadores. Sempre que vem uma convocação as análises dos “especialistas” envolvem o período de treino. Mesmo porque o técnico tem que decidir como montar um time com base nos jogadores que tem. E o resultado se vê em campo, com a atuação de onze atletas individualmente bons, que por acaso vestem uma camisa parecida. Eles não são um time, porque mal se conhecem.
Quando uma jogada resulta em gol, é por causa de alguma familiaridade entre os jogadores. E muitas vezes ela é baseada em suas experiências anteriores, não relacionadas diretamente à seleção brasileira. Por exemplo, no jogo de hoje contra a Suíça, o único gol do jogo saiu de uma jogada entre três brasileiros (Rodrygo, Casemiro e Vinicius Jr) que a fizeram muitas e muitas vezes, no Real Madrid.
O fator geopolítico
Outro ponto importante é a “configuração geopolítica” da seleção brasileira. Entre os times de maior destaque no futebol mundial, o Brasil é um dos poucos que vêm de um país do “terceiro mundo”. Em geral as equipes mais fortes são as da Europa: Itália, Alemanha, Espanha, França, Holanda… Países que se beneficiaram da relação entre colônia e metrópole que dominou o mundo por séculos. Ainda hoje essa relação dirige a economia e a política nas relações internacionais.
Mas eu nunca tinha realmente parado pra pensar nisso, até ver isso aqui:
A princípio, não deixa de fazer sentido. E, a princípio, achei válida a opinião. Diga-se de passagem, ainda é uma opinião válida. Mas, depois de pensar um pouco mais, não consigo concordar com isso.
Então as outras seleções que estão na Copa, que não são da “elite” do futebol, não têm representatividade? E os times africanos e asiáticos, representam o quê, então?
Além disso, é um abuso de linguagem falar em “torcer contra o Brasil”. Eu torço contra a seleção brasileira. O primeiro motivo está exposto lá em cima. O segundo motivo, relacionado ao primeiro, é o fato de que a camisa representa uma coisa, mas os jogadores não.
Veja bem, eu respeito as conquistas individuais de cada um, e eles têm todo o mérito de ter conseguido se estabelecer nos grandes times europeus.
Mas, ao mesmo tempo, eles também são justamente o que sempre foi feito com os países que foram colonizados ao longo da história: a “metrópole” se apropria das riquezas nacionais de outros países e as toma para si. Em alguns casos, literalmente, com jogadores que se naturalizam para atuar por outras seleções.
Mas quando 88% de um time é composto por gente que atua em outros países, eles representam o futebol que é jogado nesses países também. E, por transitividade, representam (mesmo que indiretamente) esses países, também.
Política no futebol
Os imbecis dirão que “futebol não é lugar de política”. Não vou nem entrar nessa discussão porque ela é estúpida. O ser humano é uma criatura política, e por isso ela está envolvida em tudo o que fazemos. Dizer que não pode haver política no futebol é um completo contrassenso e constitui, no mínimo, desonestidade intelectual (ou pura imoralidade, mesmo).
Isto posto, acho relevante levar em conta também o posicionamento político dos jogadores. Olhando para esse aspecto, NENHUM deles se posicionou de forma decisiva nas últimas eleições brasileiras. Acho importante notar isso, mesmo que alguns deles demonstrem posicionamento ético e moral importante (como o Richarlison, por exemplo).
Além disso, essas eleições de 2022 foram importantes não tanto por causa da orientação filosófica, política e econômica do governo, mas sim pela simples sobrevida da democracia no Brasil. Como comentei num post do Instagram, não foi tanto uma eleição quanto um plebiscito para ditadura.
Não me sinto confortável torcendo pelo sucesso de um time que escala para jogar – como titulares! – jogadores que abertamente apoiam um governo com orientação fascista, que tentou ativamente destruir tudo neste país. Especialmente quando um cretino específico desses, que ainda por cima sonegou milhões em impostos, está no time.
Torce quem quer
Não é à toa que não torço pela seleção brasileira. Tenho sérias restrições com relação a vários aspectos envolvendo o time, e por isso prefiro, no máximo, me manter neutro. Quase da mesma forma que tanta gente tem feito em questões muito mais cruciais para o futuro do Brasil e do mundo, diga-se de passagem. A diferença é que ganhar ou perder a Copa do Mundo não fará diferença relevante na minha vida, e os isentões vão estar no mesmo barco afundando que todos nós, embora se sintam “superiores” por não participar na “polarização” (entre democracia e fascismo).
Finalmente, isso tudo é minha opinião. Compreendo e aceito de boa vontade a posição de quem decide torcer pela seleção brasileira, seja por motivos objetivos ou subjetivos, ou simplesmente porque se identifica com o Brasil e tem orgulho de torcer pelo único time pentacampeão do mundo – que, de um jeito ou de outro, é uma distinção bastante significativa.
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