Não é de hoje que eu digo que Star Wars não é Ficção Científica – e de fato não é mesmo. E, pelo mesmo critério, Oppenheimer não é um filme sobre ciência – pelo menos, não explicitamente.
Ficção Científica
Ficção Científica é um gênero específico. Embora não tenha uma definição exata, geralmente ela envolve a exploração do “futuro” da humanidade, a partir de conceitos científicos. Exploração espacial, viagens no tempo, universos paralelos, extraterrestres… enfim.
Star Wars não é sobre isso. Star Wars tem mais em comum com histórias de fantasia do que com ficção científica. De fato, daria pra argumentar que Star Wars não é nada científico, embora haja cientistas na história.
“Science fiction can be defined as that branch of literature which deals with the reaction of human beings to changes in science and technology.”
Isaac Asimov
Acho que essa é a melhor definição. Há outros que usam o futuro para definir o gênero, como o Robert Heinlein (autor de Starship Troopers), mas o problema disso é que há contraexemplos, como Battlestar Galactica – motivo pelo qual eu coloquei “futuro” entre aspas lá em cima.
De qualquer forma, Star Wars não fala do impacto da ciência e da tecnologia sobre a sociedade (humana ou não). É uma história de aventura, fantasia, mistério, “é um conto de moralidade”, como diria o Mark Hamill. É a Jornada do Herói; em outras palavras, é uma “ópera espacial”. O próprio George Lucas uma vez se referiu à saga dessa forma: “é como poesia, eles rimam” (referindo-se a como existem paralelos entre as diferentes histórias contadas nos filmes).
Mas este post não é sobre Star Wars! Então por quê eu comecei falando disso? Isso vai ficar claro mais para a frente.
Oppenheimer
“Oppenheimer” é o mais recente filme do Christopher Nolan (responsável entre outras coisas pela trilogia do Batman do Christian Bale e Interestelar). E, de fato, existe muita ciência envolvida no filme.
O Nolan é conhecido por ter uma abordagem meio… “extrema” com os filmes dele, porque – nos casos de Interestelar e, agora, Oppenheimer – ele fez questão de manter tudo o mais cientificamente correto possível.
Interestelar teve, de fato, a participação de ninguém menos que o Kip Thorne – físico famoso do Caltech, importante no campo da gravitação e ganhador do Nobel de Física de 2017 pela sua participação na detecção de ondas gravitacionais pelo LIGO.
Pelo menos nesse aspecto, o Christopher Nolan é realmente um ponto fora da reta. Não sei de nenhum outro diretor que demonstre tamanho comprometimento com a veracidade científica daquilo que é mostrado nos filmes dele.
A ciência de Oppenheimer
Os próprios consultores científicos dos filmes dele afirmam isso, dizendo que Nolan “torna o seu trabalho fácil“. Correções são sempre necessárias, mas com ele isso é raro.
Por isso, do ponto de vista científico, quase não há erros em “Oppenheimer”. Talvez, sob a perspectiva de alguém que de fato trabalhe com Física Nuclear, isso possa não ser verdade. Mas as informações que ele apresenta no filme são confiáveis o bastante. Elas não transmitem nenhuma informação factualmente errada ao público em geral – o que é muito difícil.
Eu mesmo não sou especialista em Física Nuclear. Fiz umas disciplinas a respeito na graduação, mas já faz tempo e tem bastante coisa que eu já esqueci. Mas, pra mim – e pros nucleares que eu consultei – tá tudo certo mesmo.
Até mesmo o que tava errado tá certo, aliás. Por exemplo, a preocupação de que a bomba poderia incendiar a atmosfera era real na época. Hoje em dia se sabe que essa preocupação era totalmente infundada. Seria necessária uma explosão absolutamente imensa, e uma concentração de deutério muito maior que a que existe de fato. Mas, na época, a fusão nuclear era muito pouco conhecida. As primeiras ideias sobre como as estrelas geram energia surgiram em 1929. O Hans Bethe – aquele mesmo do filme – descreveria a primeira cadeia de fusão dez anos depois, através do decaimento beta. Mas as condições necessárias para uma reação autossustentável de fusão ainda não tinham sido esclarecidas.
Bateu na trave – mas entrou
Ou seja, a ciência do filme não só está correta sob o ponto de vista técnico, mas também sob o ponto de vista histórico. A única exceção acontece em um certo momento no começo do filme. Ao falar sobre o Einstein, alguém menciona que a relatividade “revelou” a física quântica. Não existe, na verdade, nenhum motivo para que uma tenha levado à outra – as duas nasceram mais ou menos juntas. Mas a teoria da relatividade não teve nenhum papel central nas descobertas da física quântica, muito menos da física nuclear. Existe, sim, uma equivalência entre matéria e energia, uma vez que a massa em uma reação nuclear não é conservada. Mas é um erro implicar que uma coisa levou à outra.
Honorável coadjuvante
Mas o ponto aqui é outro – sim, a ciência é um ponto central do filme. Mas, ao mesmo tempo, ela é coadjuvante. Ela informa o roteiro, mas não o controla. Em outras palavras, o roteiro não gira em torno disso. E, vamos admitir, isso seria insuportável para a vasta maioria dos espectadores. Em vez disso, ela faz parte da história, tanto quanto qualquer outro tipo de informação. Por exemplo, é como a conversa sobre o Quarterão com Queijo, em Pulp Fiction. Aquela conversa poderia ser sobre qualquer outra coisa, porque o assunto não está no foco da ação. Mas oferece contexto, porque a conversa é sobre a viagem do Vincent à Europa. A Física faz o mesmo papel aqui, fornecendo o contexto para a história do filme. Na verdade, ele fala sobre a política do uso desse novo tipo de tecnologia. A Física é a honorável coadjuvante.
Mais ainda: Oppenheimer não é um filme de guerra, mas sim um filme sobre a política da Guerra. Ele fala sobre a dicotomia entre o trabalho de um grupo enorme de pessoas e a sua capacidade de controlar o uso dos frutos da empreitada. Qualquer esforço, por mais bem intencionado que seja, tem consequências que nem sempre são previstas ou totalmente entendidas.
A escolha impossível que foi forçada sobre essas pessoas é clara. Ou os EUA construíam a bomba, ou os nazistas a construiriam. Deixar de construir a bomba, principalmente antes do Dia D, simplesmente não era uma opção.
A Política da Bomba
Em vez da ciência, o grande foco do filme é não apenas a Bomba em si, mas a política envolvida. Não somente na decisão de construir um artefato tão aterrorizante, mas também na decisão de realmente utilizá-la. Para mim, pelo menos, uma das cenas mais terríveis do filme é justamente aquela em que eles decidem quais serão as cidades atingidas.
A ocorrência de tantas mortes civis não parece preocupar tanto os políticos – justamente os que são responsáveis pela decisão. E a escolha das cidades é feita de maneira casual – quase como se escolhe um sabor de pizza.
Até hoje em dia se discute se a decisão de usar a bomba contra o Japão foi correta; e na verdade eu acho que nunca haverá uma resposta definitiva para essa pergunta. A questão maior é se essa decisão foi realmente necessária, já que não está claro o quanto os oficiais americanos sabiam a respeito da determinação japonesa.
De qualquer forma, a decisão de usar um artefato desse contra a população civil é, na melhor das hipóteses, moralmente questionável.
Oppenheimer versus Strauss
No fim das contas, embora seja baseado em uma biografia do físico, o filme de fato deveria se chamar “Oppenheimer versus Strauss”; embora o foco esteja centralizado majoritariamente sobre o cientista, fica claro que Lewis Strauss desempenha papel central na narrativa – que é contada sob os dois pontos de vista.
Nolan usou uma linha do tempo bastante descontínua, e a história é contada com base em uma série de flashbacks, tanto do Oppenheimer (as cenas coloridas) quanto do Strauss (as cenas em preto e branco). Se eu tivesse que determinar qual o momento presente no qual o filme “acontece”, eu diria que é a sessão de confirmação do Strauss como membro do gabinete do Eisenhower. Todo o resto funciona como uma contextualização desse momento em que o karma volta para assombrar o arquiteto da derrubada de Oppenheimer.
Concluindo
Como qualquer outro filme do Christopher Nolan, vale a pena assistir. O filme causa impacto, sabe dosar os diferentes elementos e é acessível. É capaz de agradar desde o público leigo até aqueles com grande familiaridade com o Projeto Manhattan e a política envolvida. A linguagem é cheia de nuances e, ao mesmo tempo, não é necessário ser nenhum expert em cinema para entender certas cenas. A comemoração dos cientistas depois do teste em Trinity, por exemplo, me encheu de tristeza, embora tenha sido uma cena aparentemente alegre.
Nolan se acovardou na hora de mostrar o ataque propriamente dito – sem mostrar a explosão da bomba e o prejuízo humano da explosão sobre o povo japonês, o filme fica com um buraco – um déficit triste de empatia. Sendo um filme sobre a interação entre ciência e política, é possível vislumbrar uma linha de raciocínio que exclua essas cenas do filme – mas, moralmente falando, seria uma maneira de assumir uma parcela da responsabilidade pelo sofrimento causado às vítimas da Bomba.
A Ciência, como qualquer empreitada humana, é inerentemente política. Negar isso é negar a própria natureza da atividade científica. De fato, ela não existe em um vácuo. Toda descoberta científica, uma vez divulgada, é mais um gênio fora da garrafa, cujas consequências nem sempre são desejáveis ou até mesmo previsíveis. Como cientistas, temos o dever moral de assumir a responsabilidade pelo conhecimento que geramos. Os avanços que surgiram na Era Atômica são inúmeros, e ajudaram a melhorar a qualidade da vida humana no geral. Mas a que custo?
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