O texto abaixo foi publicado em uma Tribuna do CEFISMA. Ele foi originalmente adaptado de outros dois posts que fiz aqui, com algumas edições.
Vida Acadêmica
Em qualquer lugar do mundo, uma pessoa que decide se aventurar na vida acadêmica está adquirindo um bilhete para uma viagem que, muitas vezes, pode ser bastante desagradável e traumática.
Ao contrário do que possa parecer, em especial àquelas pessoas que dele não fazem parte, o meio acadêmico não é nada fácil.
Durante a graduação, já somos bombardeados por demandas que muitas vezes parecem injustas e até mesmo desleais. Desde o início, deficiências na formação escolar prévia são evidenciadas, como um nervo exposto. Muitos daqueles cuja função deveria sanar essas dificuldades, instigando no estudante o espírito questionador e curioso do cientista, se aproveitam disso como uma oportunidade para oprimir em vez de elevar. A carga de estudos é pesada: listas, provas, relatórios, tudo isso num ambiente novo, muitas vezes até mesmo outro estado, com pessoas que a princípio não conhecemos, e não raro com professores que não se dão ao trabalho de orientar o estudo. Temos que reaprender a aprender, adquirir novas técnicas de estudo, internalizar conceitos que muitas vezes não são intuitivos nem imediatos. Cálculo, Física, Laboratório…
E, em cima disso, todas as demandas: não pode reprovar, não pode tirar nota baixa, senão você não avança, não consegue bolsa, não consegue orientador, não vai fazer mestrado… a mensagem que muitas vezes recebemos é: ou somos perfeitos, ou não valemos nada.
Infelizmente, o IFUSP é uma instituição que perpetua a máxima de Paulo Freire: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Nossos docentes passaram por tudo isso na época deles, também. Tiveram professores ruins, que não ensinavam direito ou simplesmente nem mesmo tentavam, provas impossíveis, a pressão interminável pelo desempenho acadêmico ótimo, a punição por qualquer falha ou “desvio da rota”. A educação deles não foi libertadora, e por isso muitos deles – intencionalmente ou não – perpetuam esse sistema que não nos ensina a ser Físicos – uma coisa que Feynman, com todos os seus defeitos, falava corretamente. Não formamos cientistas – formamos repetidores de fórmulas. Não estudamos Física, estudamos para a prova. Não aprendemos a buscar por respostas, senão aquelas que o professor quer ver na prova. Selecionamos os mais tenazes e os mais privilegiados, suprimindo os “indignos”. “Evasão não é problema, é solução”, diriam alguns.
Para aqueles que “sobrevivem” à graduação, a situação só piora. A mudança do status de “estudante” para “cientista” é intensa, abrupta e implacável. O aluno de pós-graduação em geral é exposto a um aspecto do mundo que ele muitas vezes nem sabia que existia durante a graduação; de repente ninguém mais está disposto a esperar por ele, e logo fica claro que ele será o único responsável pelo que faz – e pelo que deixa de fazer. Para alguém que está acostumado a seguir os prazos e cronogramas que são criados (ou impostos) por outras pessoas, não é nada trivial aprender a planejar suas atividades – muitas vezes com semanas ou meses de antecedência.
Em uma situação normal, a figura do orientador serviria para ensinar e incentivar esse tipo de atitude, mas muitas vezes não é isso que acontece. Em vez disso, cada encontro de trabalho torna-se uma sessão de tortura, na qual prazos cada vez mais curtos e cobranças cada vez mais exigentes são desfiladas diante do orientando, que por sua vez sente-se cada vez menos preparado para enfrentar os desafios que o trabalho oferece, que não são poucos.
Disso nasce a chamada “Síndrome do Impostor“: a pessoa começa a pensar, erroneamente, que não é capaz de cumprir o que prometeu fazer, de fazer jus à confiança depositada nela, de corresponder às expectativas do orientador… a pior pressão que a pessoa sofre é aquela exercida por si mesma. A pessoa olha para si mesma e não enxerga o que espera, que é o padrão de um cientista conforme a imagem deturpada exibida por jornais, revistas e pelo entretenimento em geral de uma pessoa inteligente, racional, crítica, inovadora.
Ninguém é inteligente, racional, crítico e inovador 24 horas por dia.
Como já disse Edison, a genialidade é 1% inspiração e 99% transpiração. Ou seja, 99% do tempo não estamos fazendo nada senão o trabalho árduo e contínuo de todos os dias – o trabalho da formiga operária. Aqueles poucos momentos em que surge uma grande ideia, aquela que “destrava” todo o trabalho, que desencadeia todo o desenvolvimento, no entanto, são a única coisa que transparece ao espectador externo. Todo o trabalho, o sono perdido, os caminhos sem saída, as idéias que deram errado, tudo isso é ignorado, e a imagem que fica é somente aquela ideia genial, da pessoa que está sempre dizendo algo significativo e profundo o tempo todo.
É com esse fantasma que quem se aventura na pós-graduação convive: a ideia de que você só vale alguma coisa como ser humano se demonstrar, todo o tempo, que é capaz de ser inteligente, racional, crítico e inovador. E, quando falha, a pessoa corre o sério risco de desenvolver uma série de problemas psicológicos que nascem do confronto entre a imagem do que se deve ser e do que se é realmente. Esse é o cerne da Síndrome do Impostor: “estou aqui porque mostrei que sou genial, se eu não for genial eu sou um impostor e um mentiroso, não sou digno”. Independentemente de suas realizações, a pessoa compromete sua autoestima à avaliação sobre si mesma que percebe nos outros.
Essa situação é a linha de base da pós-graduação. Para aqueles que já trazem consigo a bagagem dos problemas criados pela “vida real”, a situação pode se tornar muito volátil e atingir um trágico ponto de ruptura.
No mundo acadêmico isso é particularmente cruel, pois o conceito geral é de que o cientista só tem valor se publica muitos artigos em revistas de alto impacto, que recebem milhares de submissões e recusam a maior parte. Um exemplo: a Nature Materials, edição da famosa revista Nature dedicada à ciência de materiais, recebeu aproximadamente 250 submissões por mês em 2012. Menos de 10% desses foram eventualmente aceitos para publicação. Mesmo assim, essa altíssima taxa de turnover é ignorada e a rejeição de um trabalho torna-se uma experiência muitas vezes traumatizante e nociva à autoestima do pesquisador, que se vê diminuído, e que muitas vezes vê seu trabalho sendo julgado não pela qualidade da pesquisa que foi feita, mas por outros critérios – inclusive critérios políticos.
E no Brasil?
Isso tudo vale para o mundo inteiro. Em cada país o sistema de pós-graduação funciona de maneira ligeiramente diferente, mas a pressão por resultados é, invariavelmente, enorme.
Naturalmente, no Brasil a situação é bem pior.
As condições da ciência no Brasil nunca foram muito favoráveis. Talvez tenha havido exceções pontuais a essa regra, mas no geral não há dinheiro para pesquisa:
- Bolsas de mestrado e doutorado, quando existem, são baixas, especialmente quando se leva em conta o custo de vida nas cidades onde há Universidades – quase sempre públicas – com programas de pós-graduação.
- O pós-graduando não se encaixa em nenhuma categoria profissional, o que significa que os anos de trabalho em mestrado e doutorado são trilhados sem registro em carteira, sem direito a férias, sem estabilidade de salário, sem contagem de tempo da aposentadoria, entre outras coisas.
- Não há segurança: muitas vezes o pagamento da bolsa atrasa, ou simplesmente não acontece. Muitas vezes a pessoa está no exterior e fica totalmente vulnerável, à mercê da burocracia. E, se ocorrer algum problema, existe o fantasma de ter que devolver tudo para a agência de fomento.
- Os recursos para equipamento de laboratório são igualmente escassos. Há poucos equipamentos de cada tipo disponíveis, e naturalmente as filas de espera são grandes.
- Os recursos para a manutenção do equipamento de laboratório são igualmente incertos: quando um equipamento apresenta defeito e não há maneira de se executar uma “engenharia de emergência”, o equipamento fica sem uso e quem precisa dele, com as mãos atadas.
Isso sem contar o nível de burocracia envolvido em cada passo do caminho. Via de regra o caminho para se conseguir recursos é longo e tortuoso. E, como são limitados, geralmente a concorrência é brutal, o que leva a uma pressão ainda maior não apenas por quantidade de resultados, mas também por relevância.
Ainda há a crise econômica. A primeira vítima dos cortes é sempre a pesquisa, por menor que seja seu orçamento. Cada vez há menos perspectivas para quem está na pós-graduação. O noticiário político e econômico, que já deixa qualquer um depressivo, é ainda pior para o pós-graduando, pois é indicativo de que o futuro é ainda pior.
No Brasil ainda não temos uma cultura que valorize o suficiente o trabalho acadêmico. Isso leva muitas famílias a questionar a sabedoria das decisões de alguém que escolhe seguir por esse caminho, em vez de “conseguir um emprego”. “Mas o seu primo já está trabalhando em tal companhia, e faz tal e tal coisa, e já ganha um bom salário, e você aí ainda estudando. Quando você vai parar de estudar pra casar e ter filhos? Você deveria fazer alguma coisa prática, isso daí não serve pra nada”.
Além de responder às questões que pretende responder com seu trabalho, a mente de um pós-graduando é atormentada por outras perguntas que, idealmente, não deveriam ter tanto peso. Como produzir resultados relevantes e em abundância, preocupado em não corresponder às expectativas do orientador? Em ser capaz de cumprir com suas responsabilidades? Em conseguir usar o equipamento de que precisa? Em conseguir os materiais necessários para a pesquisa? Em fazer a família compreender o que significa seu trabalho? Em pagar as contas do mês e ainda se alimentar?
E também existem as preocupações com o futuro. O que fazer depois do doutorado? Entrar na “roda” de fazer pós-doc até que algum concurso apareça, concorrer um um número enorme de candidatos entre os quais sempre há alguém com um currículo melhor (afinal de contas o número de vagas não chega nem perto de absorver os doutores que vão se formando), ou tentar as águas inexploradas do empreendedorismo, ou tentar o terreno proibido da “indústria”?
E no IFUSP?
Em 2024 se completarão 25 anos desde que eu entrei no IFUSP. 25 anos de histórias e lembranças. Um quarto de século presenciando o efeito terrível que o mundo acadêmico tem sobre a saúde mental das pessoas.
É bom ser justo: muitas coisas melhoraram desde 1999. Mas, ao mesmo tempo, parece que outras coisas pioraram.
Hoje em dia, existe um mínimo de conscientização sobre saúde mental. Em 99 ninguém falava sobre isso. As pessoas (e, infelizmente, eu me incluo entre elas) faziam brincadeiras que basicamente pegavam as vulnerabilidades de alguém, as transformavam em símbolos e ridicularizavam tudo em público.
O processo de trote de ingressantes à Universidade era uma coisa monstruosa que justamente no ano que eu entrei no Bacharelado em Física atingiu o ápice quando morreu um calouro na Medicina. Desde então, surgiram medidas para conter o trote violento ao ponto que hoje em dia virtualmente não existem mais as humilhações que aconteciam antigamente, salvas as devidas proporções e as eventuais exceções à regra, como às vezes somos obrigados a ver no noticiário.
Muitas coisas finalmente deixaram de ser assunto de piada e a conscientização geral das pessoas criou um clima mais inclusivo de forma geral. Ainda existe muita toxicidade, preconceito e elitismo, mas ao mesmo tempo esses problemas têm recebido mais atenção, e as pessoas têm optado, cada vez menos, por ficar em silêncio.
Antigamente não existia nem possibilidade de acolhimento. Não existia opção, não existia nada. Ou você era “normal”, ou era “maluco”. E as pessoas da Física em geral vestiam a carapuça de “maluco”, e isso justificava todo tipo de absurdo. E sim, eu sei que o termo que eu usei pode parecer meio pesado. É justamente esse o ponto. A conscientização sobre saúde mental era inexistente a tal ponto que termos relacionados eram sempre usados de forma pejorativa.
Tem aspectos que estão piores, também. Antigamente era mais fácil mobilizar as pessoas, por incrível que essa noção possa parecer. Muitas pessoas ficam presas nas redes sociais e acabam caindo na ilusão de que compartilhar postagens e “xingar no tuíter” é suficiente. Quando surge uma necessidade real de mobilização, a organização fica muito mais difícil porque, presa no mundo digital, a pessoa pensa “ah, eu já tô ajudando”. Antigamente não existiam redes redes sociais, de forma que para participar era necessário fazer alguma coisa, se deslocar até o objetivo, por exemplo o CEFISMA, para participar de alguma atividade. Ficávamos sabendo dos eventos pelos painéis de aviso; no máximo, via email. Era difícil conseguir as coisas, então as pessoas se sentiam mais motivadas a participar presencialmente, ativamente, porque se não fosse assim, não acontecia.
Isso não é uma crítica ao mundo digital propriamente dito; mas, ao mesmo tempo que facilitou a comunicação e até mesmo a tornou possível para muitas pessoas, ele teve efeitos muito negativos sobre a nossa capacidade de conviver uns com os outros.
Então, a situação melhorou? Sim, melhorou. Mas está longe de deixar de ser tóxica. Por mais que o contexto geral possa ter melhorado, o mundo hoje em dia induz muito mais problemas de saúde mental: o neoliberalismo avançou muito, e o mundo piorou também. Olhamos para o mundo hoje em dia e temos menos esperança no futuro do que antes.
Existem as pressões da faculdade e/ou da pós, as contas a pagar, a incerteza de poder ter um futuro na profissão que escolheu, o mundo literalmente queimando porque uma minoria cada vez menor domina uma parcela cada vez maior da riqueza do mundo e se recusa a desistir da ganância, o avanço desumanizante do capitalismo, a ascensão do fascismo… Com essa enxurrada de notícias ruins, não é nenhuma surpresa que o lado psicológico de qualquer um fique abalado.
As semanas recentes têm sido difíceis para nós, no IFUSP. Não apenas uma, mas duas tragédias nos atingiram, e de forma cruel. Cada vez que isso acontece é um fracasso da Universidade, e de todos nós como comunidade acadêmica.
O que fazer, então?
Na minha ótica, existem duas opções.
A primeira delas é se render e deixar o mundo seguir. Por mais que eu admire a filosofia estoicista, não vejo essa opção como moralmente justificável.
A outra opção é tomar algum tipo de atitude. Buscar encontrar maneiras de ajudar quem precisa. E essa abordagem passa por duas fases:
- Cuidar da nossa própria saúde mental, e buscar os meios para fazer isso. Nos educarmos sobre os desafios que enfrentamos, e construir as ferramentas para isso.
- Cuidar de quem precisa de cuidado. Prestar atenção àquelas pessoas à nossa volta, ter compaixão e empatia pelo próximo, que pode estar passando por uma situação que desconhecemos.
A ausência de suporte institucional é o maior obstáculo. Até conseguirmos fazer com que o Instituto e a Universidade se mexam de verdade, temos que ter a consciência de que não podemos simplesmente esperar que as coisas melhorem por vontade própria. Buscar meios de integrar as pessoas e de criar um sentimento de comunidade, de inclusão e de acolhimento, e de rechaçar a perspectiva excludente e opressora que tem dominado a vida acadêmica em geral e no IFUSP em particular.
Cada um tem suas próprias características pessoais, e parte do desafio é acolher cada um da maneira mais adequada. Isso é parte do desafio da convivência, e entender as particularidades de cada um, seu histórico, desafios, obstáculos e luta, também é uma forma de acolhimento.
Qualquer forma de manifestação, de abertura, de acolhimento, de cooperação é válida. Coletivamente, é nossa responsabilidade garantir que tragédias assim nunca aconteçam.
Deixe um comentário